domingo, 18 de junho de 2017

Lacerate

E o dia passava rápido, como o bater de asas de uma andorinha. Passava rápido, pois ela também estava pensando rápido. Andando rápido, Comendo rápido, Bebendo rápido (Mais rápido que o fígado podia processar), dançando rápido. Ela vivia rápido na esperança de que sua vida pudesse passar mais rápido, para que ela não precisasse mais passar a vida com essa guarda levantada. Alerta a todos os momentos, pronta para se defender das pequenas coisas do dia a dia, que guardavam as lembranças que lhe pegavam de assalto, e rasgavam-lhe pedaços da carne-coração.
   A pista de Dança estava a mil, numa avalanche desordenada de sensações sinestésicas que eram batidas no cérebro pela vodka que vinha do estômago. Ela lutava bravamente para manter a cabeça entretida. Deixava-se levar sozinha pelo ditar mecânico da música enquanto a mente vazia contrastava o corpo cheio de tudo que ela não queria. Sentia algo faltando ali. Algo errado, algo estranho, como um membro faltante. Um fantasma que a agarrava de curva em curva pelo braço para endireitar-lhe os passos. Irritava-se. Não era para isso que estava ali.
   O carro arrancou assim que ela passou pela porta de entrada deixando-a sozinha no saguão, tentando acertar a chave na fechadura. Ela entrou no apartamento escuro sem acender as luzes. Nada que havia ali valia a pena ser observado. Passou pelos cômodos envoltos em sombras. Despiu-se, e enfrentou o jato de água quente enquanto olhava inexpressivamente para a parede à frente, esperando que ao menos hoje, as coisas fossem diferentes.
   Ao menos hoje, quando levantasse, ela não passaria os primeiros 15 minutos do dia sentindo falta de algo que ela não sabia exatamente o que era (ou sabia). Ao menos hoje, ela não queria acordar sozinha, e sentir aquele vácuo odioso no meio da caixa torácica que fazia parecer que o coração havia sumido. Ao menos hoje, ela não queria  sentir a ausência de algo quente que ocupava o espaço entre os braços dela durante o banho. Ao menos hoje, ela não queria deitar a cabeça no travesseiro no final do dia e agarrar o próprio corpo entre os braços, sentindo que deveria ter algo mais ali com ela. Algo que não estaria ali nunca mais.
   Ao menos hoje, ela não queria sentir que tão pouco tempo atrás (mesmo que parecesse ter sido numa vida passada) ela não era apenas ela. Ela era parte de alguém, e aquele alguém era parte dela, mas agora aquela parte lhe fora arrancada. E as sombras infestaram o buraco que ficara apodrecendo o dia dela com memórias de uma vida que não lhe pertencia mais.

   Então por fim, ela regou o travesseiro com as lágrimas habituais, arrancadas à unha entranhada na carne. Pois a dor física era um consolo singelo, que aliviava um pouco a dor tão maior, da mente que lhe dilacerava por saber que um dia ela amou, e perdeu.