Carrego comigo a essência das feras, um perfume
entranhado, uma seiva, e por vezes, me atiro sobre a presa. Eis o crime, a
fúria, o atrevimento. O lobo em mim, a hora do desespero, a violenta
necessidade de sobrevivência que irmana toda a criação. Sou um mamífero de rapina:
garra, dente, e bote. Mas não trago a identidade verdadeira da arribação, e não
me é fácil deixa o campo de caça, a quadra onde sei viver. Dito de outro modo,
não corto os laços com o covil. Se é imperioso viajar, lanço mão de mochilas
grandes, com muitas roupas e livros, postiça sensação de que levo a toca junto.
Mais do que tudo, não deixo o sotaque original, testemunho e garantia de vir de
um lugar, ser cria do meu rincão, e não de qualquer outro. Claro que vejo as
outras coisas, tenho curiosidades, convivo com diferenças, e tudo isso é nada,
porque força alguma arranca a raiz se ela é profunda, a base é sólida e o chão
nativo é uma certeza. Assim, não dou beira a frivolidades, maquiagens, e
novidadeirices: quero saber de força e firmeza, amparo e afeto, valor e verdade.
Amenidades não saciam a ânsia que a custo refreamos. Está certo que chegamos
até aqui, criamos o verniz, a capa de polidez, o bom-tom. Além disso, os
anciãos da tribo afirmam que o hábito é uma segunda natureza. Pode ser. Pode
até ser: os costumes civilizados fazem a existência possível e confortável. Mas
nos mais genuínos dos nossos o adestramento não consegue ser perfeito e, firme
na espreita, o bicho faminto guarda na língua a sabedoria dos nutrientes inequívocos.
E vamos dizer de uma vez que os baixos teores são desprezíveis pra quem vive de
abocanhar carne e sangue e, debaixo de véus de elegância, preserva o paladar
selvagem. Se é assim, na destreza da camuflagem vai a certeza de que a linhagem
não degenera.
Liturgia do sangue-ReNato Bittencourt Gomes
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